Estorvo, adaptação do romance homônimo de Chico Buarque, assinala uma ruptura com a linguagem hegemônica do cinema brasileiro dos anos 90. Por meio de uma estrutura circular, subjetiva, pautada pela dissolução do espaço e do tempo, narra o pesadelo existencialista de um personagem à deriva, sem perspectivas, a caminho da marginalidade. Somado a Acossada, de Karen Akerman e Karen Black, filme que ironiza o batizado "cinema da retomada" nacional, gerado na década de 90, através de uma releitura de Acossado, clássico de Jean-Luc Godard, o programa nos permite entender, de maneira crítica, um momento particular da história do cinema nacional.
Filmes do Programa 12
Tempo total aproximado do programa: 102 minutos.
Crítica
A Provocação na ordem do dia
Fernando Verissimo
?Um filme do Cinema Novo na era do videoclipe?: assim o diretor de fotografia Marcelo Durst definiu, à época de seu lançamento, o estilo de Estorvo, adaptação do romance homônimo de Chico Buarque pelo lendário Ruy Guerra.
O próprio realizador insistia, em mais de uma entrevista, que seu filme não se distanciava das propostas originadas do movimento (de que foi um dos fundadores e representantes mais talentosos e inovadores), situando a experiência de Estorvo num contexto dominado pelo mal-estar e repulsa generalizados diante de projetos mais arriscados, e pela subserviência a uma proposta de cinema de fácil assimilação, que buscava a todo custo a bênção do mercado.
Nada mais coerente no cinema de Guerra, que conta com uma longa carreira que pode ser qualificada, na falta de melhor definição, por uma postura de desafio. Foi assim desde o início, quando as platéias se viram chocadas diante de sua própria crueldade, ao testemunharem o corpo da musa Norma Bengell exposto ao estupro de uma câmera estática em Os Cafajestes (1962) ? um dos marcos do cinema brasileiro, que nos apresentava a um novo e impressionante modo de filmar.
Ali se revelava, pela primeira vez, um improvável (porém sólido) ponto de contato entre uma das mais frutíferas e cosmopolitas correntes do cinema moderno ? a Nouvelle Vague francesa ? e uma das mais radicais interpretações da realidade nacional no século XX ? cristalizada no conjunto da obra do Cinema Novo. Quase quarenta anos depois, Estorvo surge, necessário, para reinstituir a provocação na ordem do dia, dominada pela falsa ordem das imagens publicitárias, limpas, estéreis, ou artificialmente sujas.
Pois é no território do delírio, do caos, que se instala essa experiência brutal de perda de referência - uma experiência de devaneio e de territorialidade, uma afirmação brusca e agressiva, de ranger de dentes contra as coisas sãs e apagadas. O império do excesso e da exceção, ao mesmo tempo turvo e cristalino ? dizia-se de Kafka que seu problema fosse talvez o de excesso de clareza.
Testemunho e homenagem a essa postura desafiadora, o curta-metragem Acossada (Karen Akerman e Karen Black), que completa o programa, refaz a seu modo particular (no referencial que sintetiza e incorpora Sganzerla e Godard) este percurso que tem na origem e no fim a figura ímpar de Ruy Guerra.

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